segunda-feira, 11 de abril de 2011

Poemas de Nuno Júdice

O LUGAR DAS COISAS


Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.


Essas palavras são duras como os objectos
que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.


Tento incendiá-las quando escrevo, como se
o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de
                                                 [ sílabas.


Então, atiro sobre as palavras outras palavras,
água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a
                                                 [ voz
não fique queimada nesta paisagem negra.


Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,
artigos, preposições, para que só as palavras que
                                                 [ indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.


Pouco importa que as frases percam o sentido. O
que fica são os nomes das coisas, para que as
                                                [ coisas saiam
de dentro deles e as possamos ver nos seus
                                                [ lugares.

  
O AMOR

Deus — talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou. Está nos teus
lábios, na tua voz, nos teus olhos,
e talvez ande por entre os teus cabelos,
ou nesses fios abstractos que desfolho,
com os dedos da memória, quando os
evoco.

Existe: é o que sei quando
me lembro de ti. Uma relação pode durar
o que se quiser; será, no entanto, essa
impressão divina que faz a sua permanência? Ou
impõe-se devagar, como as coisas a que o
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com
a pressão subtil da vida?

Um deus não precisa do tempo para
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre
estas ausências, mete-se no próprio
instante em que estamos juntos, foge
por entre as palavras que trocamos, eu
e tu, para que um e outro as levemos
connosco, e com elas o que somos,
a ânsia efémera dos corpos, o
mais fundo desejo das almas.

Aqui, um deus não vive sozinho,
quando o amor nos junta. Desce dos confins
da eternidade, abandona o mais remoto dos
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como
um cão, ouvindo a música da noite. Um
deus só existe enquanto o dia não chega; por
isso adiamos a madrugada, para que não
nos abandone, como se um deus
não pudesse existir para lá do amor, ou
o amor não se pudesse fazer sem um deus.


NUNCA SÃO AS COISAS MAIS SIMPLES

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
 
 
* * * 
Nuno Júdice - ensaísta, poeta e ficcionista português.

Biografia e outros escritos do autor, conheça AQUI.

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